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Muitos irmãos perguntam o que entendo ser “boa música evangélica”. Essencialmente, me baseio em três fatores como critério. Primeiro: a letra tem de ser bíblica. Segundo: a letra tem de ser bíblica. Terceiro: a letra tem de ser bíblica. Pronto. Quando falo isso, a reação em 100% dos casos é uma cara de espanto ou um riso e a pergunta “ahn, só isso?”. E aí começa uma série de perguntas, como “mas o compositor não tem que ser crente?”, “e se for uma versão de uma música secular?”, “e se o cantor estiver vivendo em pecado?” e outras que você certamente já conhece. A esse respeito já discorri bastante no texto “Cristão deve ouvir música do mundo?“, mas volto ao assunto para fazer mais algumas observações sobre o tema.

Quando falamos de “música evangélica” estamos nos referindo basicamente a quatro tipos de canções, cada um com uma finalidade específica. Primeiro, pode ser um louvor (palavra que etimologicamente significa “elogio”) e, nesse caso, precisa necessariamente ser teocêntrico. Ou seja, tem que ter como foco Deus (Pai, Filho ou Espírito Santo). Pois cantar um louvor é exaltar a pessoa de Deus e/ou os seus feitos. Não se pode dizer que um louvor é uma música que fale sobre a vida de Sansão, por exemplo. O louvor torna-se, assim, o tipo de música cristã básico e principal nos cultos, uma vez que a finalidade das reuniões públicas que chamamos “culto”, por definição, é a adoração e a exaltação do Senhor.

“Músicas evangélicas” também podem ser canções acerca de temas bíblicos mas que tenham um caráter didático. É o caso, por exemplo, de cantigas infantis, que servem para ensinar histórias bíblicas ou verdades da fé para crianças, como “Homenzinho torto“. Nesse caso, os holofotes não estão especificamente sobre o Senhor, como no louvor, mas também no homem, para cuja edificação e aprendizado essas canções foram compostas. Louvor é algo para Deus; músicas de caráter didático são sobre Deus para o homem.

Há ainda um terceiro tipo, que não é nem louvor nem algo didático, mas simplesmente músicas que se referem a realidades do universo cristão. Nesse terceiro grupo há variações, como as que servem para edificar, consolar ou exortar os que ouvem – como “O mover do Espírito” (“Quero que valorize o que você tem, você é um ser, você é alguém tão importante para Deus…”) – ou as que promovem a comunhão – como “Visitante” (“Visitante, seja bem-vindo, sua presença é um prazer…”).

Por fim, o quarto grupo são músicas cujas letras remetem às coisas de Deus mas servem para o entretenimento e o prazer de quem escuta, como aquelas canções que alcançam sensorialmente e esteticamente quem ouve – da mesma forma que uma composição de Tom Jobim faria – e podem trazer elementos dos outros três tipos. Em geral, contam com um apuro harmônico e uma poesia fina nas letras. É o caso de “O Tapeceiro“, de Stênio Marcius.

Nenhum desses tipos de música cristã é depreciativo. Eles diferem essencialmente em sua finalidade. É bom que Deus seja enaltecido e louvado. É bom que aprendamos sobre as coisas de Deus. É bom que haja canções que nos remetam e conduzam para o universo da fé. E é bom que as Escrituras inspirem artistas a criar obras que nos proporcionem deleite.

Algo que costuma confundir muito as pessoas é a divisão da música cristã em “hinos” e “corinhos”. Isso não existe. É simplesmente uma convenção cultural, que classifica entre os “hinos” as canções mais antigas ou que constam de algum hinário cristão e “corinhos” algo mais recente, que de repente foi lançado em CD e toca (ou tocou) nas rádios. Assim, essa é uma mera convenção cronológica, mas não existe absolutamente nenhuma diferenciação espiritual entre uma música da Harpa Cristã e uma cantada por Heloisa Rosa, por exemplo. Em si mesmas, nada as difere enquanto finalidade.

A questão do estilo também incomoda muitos. Mas, para entender isso, precisamos observar algo sobre música. Toda música é composta de ritmo, melodia e harmonia. Em termos bem populares, podemos dizer que o ritmo é a “batida”, a “velocidade”; a melodia é o “lá lá lá”, aquilo que você assobia quando lembra de uma canção; e a harmonia é o conjunto de todas as melodias envolvidas na formatação final. Existem conceitos periféricos, como o arranjo, que é a forma de se apresentar uma mesma música, organizando esses três itens juntos (um hino do século 16 pode ser tocado como rock, por exemplo, dependendo do arranjo que se faz).

Assim, um estilo não define se uma música é ou não cristã, louvor ou o que for. É uma mera forma de se apresentar uma canção. Você encontra músicas evangélicas de estilos bem variados. “Leão da Tribo de Judá” (“Ele é o Leão da Tribo de Judá, Jesus quebrou nossas cadeias e nos libertou…”) é um rock. Já “Fonte de água viva” (“Aquele que tem sede busca beber da água que Cristo dá…”) é axé, igualzinho a Timbalada (e não faça careta, é o que é), embora possa ser tocada como reggae (ouça aqui). “Desemborca o vaso” (“Desemborca o vaso, dê glória, e seja cheio até transbordar…”) é forró. E por aí vai. Em geral, este é um aspecto que gera muita rejeição. Uns defendem que rock é do diabo, por exemplo, mas cantam na igreja, sem se dar conta, diversas músicas cristãs que têm estilo rock. Biblicamente não se pode desmerecer um estilo, trata-se de gosto pessoal. Como já ouvi, “não existe fá maior do diabo e dó sustenido de Deus”.

Assim, há quem goste dos “corinhos de fogo” (que nada mais são do que músicas em ritmo de forró e letras bem pentecostais). Há quem prefira o tipo pop mais comum, como as canções de Diante do Trono, Kleber Lucas e Marquinhos Gomes. Ou os que só considerem audíveis as que são estilo MPB, como Gerson Borges e Glauber Plaça. É geralmente no quesito “gosto pessoal” que surgem os maiores problemas. Quem gosta dos “corinhos de fogo” vai dizer que Gerson Borges é “frio e sem unção”. Quem gosta de João Alexandre vai dizer que Fernanda Brum é “música pasteurizada, clichê e sem criatividade” (e que fique claro que, naturalmente, estou generalizando).  E por aí seguimos, numa discussão que nunca terá fim.

Eu, particularmente, não gosto do que canta Cassiane. Não gosto de alguns hinos da Harpa Cristã. Mas o que eu gosto é absolutamente irrelevante para definir se uma música cumpre o seu propósito para com Deus. Gosto pessoal não entra na equação. Um louvor, por exemplo, não tem que me agradar ou agradar você, tem que agradar Deus. Então posso muito bem cantar algo que não me toca a alma mas racionalmente sei que engrandece o Senhor. É um erro achar que “boa música evangélica” é a que nos leva a um estado de profunda emoção ou catarse. Ela pode ou não fazer isso – o que não quer dizer nada em termos espirituais. Quando ouço árias de ópera, como “Nessun dorma” ou “Vesti la giubba” me emociono profundamente e choro com frequência – o que não quer dizer nada em termos espirituais, Placido Domingo não tem mais unção por causa disso. É simplesmente algo que move meu coração poeticamente e liricamente. A exata mesma coisa se dá com músicas cristãs: uma canção de Michael W. Smith me conduzir às lágrimas não atesta nada sobre sua unção, simplesmente é algo que me comove – o que não quer dizer que não tenha unção, simplesmente lágrimas não são o termômetro que define o “grau” de unção de uma música.

Estamos muito acostumados ao emocionalismo. Fomos ensinados que “unção” tem a ver com o que eu sinto na hora em que canto. Nada menos verdadeiro, senão o violino do judeu Yitzhak Perlman tocando o tema de “A lista de Schindler” ou “Por una cabeza“, de Carlos Gardel, seria a coisa mais ungida do mundo. Temos de repensar, reaprender isso: o que sinto num momento de louvor não importa perto do que eu afirmo racionalmente. Louvor é algo racional. Música didática é algo racional. Se houver emoção, ótimo, quem não gosta? Mas se não, não faz biblicamente nenhuma diferença.

Em resumo, entendo que “boa música evangélica” é a que cumpre a finalidade para a qual foi composta – e é bíblica. Se foi concebida para ser um louvor, deve exaltar Deus e seus feitos de modo que a criatura agrade o Criador. Se foi concebida para ser didática, deve ensinar bem quem ouve acerca do que transmite. Se foi concebida para levar os irmãos à comunhão, deve fazê-lo de forma ordenada e natural. E se foi concebida para ser ouvida e apreciada, deve ser bela aos ouvidos de quem ouve. Tudo isso independentemente de estilo, ritmo, melodia, quem canta, quem compôs, se é ou não versão e muito menos se provoca emoção. Mas, sempre, tem de ser bíblica. Se não for… não é música cristã.

Para terminar, compartilho aqui algumas músicas cristãs de que gosto (repare que usei propositalmente o verbo gostar) e que se encaixam no que defendo neste texto. Escolhi artistas bem variados (posso gostar deles ou não).

Entre os louvores, posso dar o exemplo de “Vencendo vem Jesus”. Muitos não sabem, mas ela é uma versão de uma música secular. Conhecidíssima, trata-se de uma canção de batalha da Guerra Civil americana que fala sobre a morte de um soldado chamado John Brown – mas que teve sua letra trocada para uma de temática cristã por uma irmã em Cristo chamada Julia Ward Howe e hoje está em hinários como a Harpa Cristã. Mostro aqui duas versões, repare a diferença de estilo. Primeiro algo bem pop rock, na voz de Kleber Lucas:

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Note que a mesma música aqui é cantada com um arranjo muito diferente, na voz de Mattos Nascimento:

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Outro louvor: “Agnus Dei” (em latim, “Cordeiro de Deus”), de Michael W. Smith, uma música de letra simples mas de profunda exaltação ao Senhor. Diz, simplesmente: “Aleluia, pois nosso Senhor, o Deus Todo-Poderoso, reina. Santo, Santo és tu, Senhor Deus Todo-Poderoso. Digno é o Cordeiro”.

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Do segundo grupo, músicas didáticas, “Quisera ser como Sansão”:

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Do terceiro grupo, escolhi, primeiro, “Galhos secos”, na voz de Paulo Cesar Baruk:

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Ainda no terceiro grupo há canções como “Perfeito amor”, de Oficina G3:

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Por fim, no quarto grupo, há “Janelas”, do querido e talentoso Gerson Borges. Interessante é que, para quem não conhece, é uma canção que poderia passar até por secular. Mas na verdade se refere à parábola do Filho Pródigo:

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Termino dizendo apenas que meu desejo utópico é que as diferenças de opinião acerca da música evangélica (eu prefiro a designação “música cristã”, a propósito) não nos desunissem enquanto Igreja. Que respeitássemos os gostos pessoais, abraçassemos verdades e não achismos e que tivéssemos mais tolerância com aquilo que não nos agrada pessoalmente. Que parássemos de gastar tempo discutindo sobre se uma canção é versão de música secular ou não (muitas das que você canta são, sem saber, inclusive dos hinários como Harpa Cristã e Cantor Cristão) e outras questões que não têm nenhuma importância. Deveríamos nos lembrar sempre das palavras do rei Davi: “Um coração quebrantado e contrito, ó Deus, não desprezarás” (Salmos 51.17) e ter a certeza de que, se de um coração como esse parte um cântico a Deus, certamente Ele não desprezará o que se canta. Infelizmente, quando vejo conversas sobre música evangélica é mais para levantar polêmicas e gerar desacordos do que para promover a união e a unidade do Corpo. E, assim, a glória de Deus.

A música é bíblica? Cumpre seu propósito espiritual? É entoada por um coração quebrantado? É cantada para a glória de Deus e não dos homens? Então que a cantemos com paz na alma e a certeza de que Deus agrada-se de nosso perfeito louvor.

Paz a todos vocês que estão em Cristo,
Maurício