Há algum tempo tive o privilégio de conversar com idosos que vivem em uma casa de repouso. Marcou-me uma senhora em especial, de seus oitenta e muitos anos. Estávamos falando sobre sua vida, quando lhe perguntei se tinha arrependimentos de coisas do passado. Ela lançou um olhar no vazio e, depois de pensar um pouco, respondeu: “Sim… eu me arrependo de ter passado tanto tempo pensando no passado”. Demorei algum tempo tentando entender exatamente o que ela quis dizer. Quando viu que eu estava parado, com cara de pastel e uma interrogação na testa, emendou: “Não é que não tenhamos de nos arrepender das besteiras que fizemos. Mas é que, se a gente olha pro futuro e não pro passado, não vamos ter arrependimento de nada, entendeu? Porque o que passou machuca, mas o que está pela frente deixa sempre a gente empolgado”. Fiquei pensativo. O que ela disse me fez lembrar de uma frase que li em um livro de C. S. Lewis: “Existem coisas melhores adiante do que qualquer outra que deixamos para trás”.
Está na moda o versículo de Lamentações de Jeremias 3.21: “Quero trazer à memória o que me pode dar esperança”. É um desejo inteligente. Mas eu confesso que, depois de muito meditar nas palavras daquela senhora, tenho tentado aplicar a minha vida uma nova disciplina espiritual: trazer à esperança aquilo que pode se tornar uma boa memória. Olhar para o futuro na expectativa das coisas boas que Deus pode trazer. Porque as dores do passado… doem. E de sentir dor quem gosta?
Por isso, é importante valorizarmos o passado sim, mas cada vez mais tenho descoberto que o passado só tem função se ele ajuda a compor nosso futuro. Porque, no final das contas, isso é o que interessa: de que modo posso pegar as experiências boas e ruins do passado para construir um futuro melhor? Pois o passado é como uma pintura estática, engessada, paralisada, limitada por suas molduras. Já o futuro é uma tela em branco, à espera das tintas, cheia de possibilidades e com grande potencial. E o presente é o pincel que toca ao mesmo tempo a mão e a tela, em processo de construção de algo novo. Se as novas gerações de pintores se contentassem em ficar apreciando os quadros no museu nada novo seria pintado. E aí viveríamos de ruminar alimento antigo e não de produzir alimento novo. A civilização ficaria congelada numa eterna contemplação do que já passou.
Eu gosto do passado. Coleciono livros com fotos do Rio Antigo, tenho um gramofone na minha sala e dois telefones antigos, um com 100 e outro com 56 anos de idade. Gosto de antiguidades. Mas, depois dessa experiência com aquela senhora, me peguei outro dia sentado no sofá, olhando para esses objetos e pensando, tentando entender por que eles me fascinam. Cheguei a uma conclusão: aquilo que não vivemos nos entristece porque gostaríamos de ter vivido e por isso buscamos estar perto desses artefatos do passado, para diminuir a distância entre nós e o que não vivemos. Eu gostaria de viver na época dos gramofones. Apesar de todos os badulaques eletrônicos que o século 21 nos oferece, aquela era uma época mais cavalheiresca, mais nobre, de pessoas mais educadas e cerimoniosas. Confesso que gosto disso, tenho saudades de quando os homens cediam o lugar no ônibus para senhoras e puxavam suas cadeiras para se sentar à mesa. Até a arquitetura era mais elegante, com estilo rococó e elegantes filigranas. Me agrada o século 19, por exemplo. Sinto pena de não ter vivido na época de Machado de Assis, com todos os atrasos que havia, a febre amarela e a ausência da Internet. Só que… de que adianta pensar nisso? Eu vivo é na época das bugigangas, dos ipads e iphones, dos ônibus espaciais e do feissebuqui, quando as pessoas sentam à mesa do restaurante e, em vez de conversar e sorver da maravilhosa experiência que é o contato humano, fica cada um imerso em seu smartphone. Quem já teve a chatíssima oportunidade de sair com amigos e ter que ficar vendo todos mexendo em seus “feisses”, “tuíters” e sms em vez de se dedicar à antiquada e ultrapassada arte de conversar com quem está à sua frente sabe o que estou dizendo. Só que não adianta nada lamentar a desumanização dos dias atuais ou nutrir a tristeza pelo que não vivi ou mesmo o que vivi e me fez sofrer. Os tempos são o que são e só o que podemos trazer é desejar que sejam algo mais próximo do que o passado foi.
As boas e más experiências do passado são as matérias que cursamos na escola da vida. Mas ninguém cursa uma escola para viver eternamente nela, cursa com vistas à formatura. A faculdade idem, cursamos com vistas ao mercado de trabalho. A vida idem idem, cursamos de olho na eternidade.
Aquela senhora estava certa: o que importa não é a cerimônia de casamento, é a vida a dois pelos anos que virão. O que importa não é a festa de formatura, é o mercado de trabalho. O que importa não é o parto, é a vida inteira daquele ser humano. O que importa não é o pecado, é o que se pode fazer com seu aprendizado após o arrependimento. Todos são como ritos de passagem para algo melhor. Muitas vezes os ritos de passagem não saem como queremos, já fui a um casamento em que o noivo desmaiou no altar, já vi formaturas chatas que me fizeram dormir, o parto de minha filha foi tenso e estressante, já cometi pecados que me fazem querer sumir. Mas o que veio depois foi ótimo: uma vida conjugal feliz, um emprego que realiza, uma filha saudável que me faz sorrir, uma caminhada em novidade de vida. Futuro.
Aquela senhora não sabia, mas suas poucas e sábias palavras cutucaram meus paradigmas. Tenho olhado o futuro com olhos melhores. Sem desprezar o passado, venho refletindo sobre ele com uma certa frieza inédita. Dores demais. Cicatrizes em excesso. Decepções além da conta. O futuro, por incerto que seja, está todo nas mãos do Pai, que segura o pincel em sua mão. E olho para o que virá com a esperança de que vire boas memórias. Muitas das que tenho hoje apagaria, se fosse possível viver o brilho eterno de uma mente sem lembranças. Já as memórias que terei amanhã são um mundo novo, misterioso e empolgante. O grande autor Gabriel Garcia Marquez já escreveu que “a vida é uma sucessão contínua de oportunidades”. Isso nos fala de uma existência em que a cada dia temos a chance de fazer algo novo, que construa um futuro memorável. Eu gostaria de colecionar em minha sala objetos do futuro, para que diminuíssem minha distância dele. O passado é limitado, já o futuro… é infinito.
Chega de saudade. Quero ter saudade do que ainda não vivi. Penso que essa é a proposta bíblica e por isso vou vivendo a cada dia o seu mal. Olhar demais para trás faz doer o pescoço. Temos é de seguir de olhos no horizonte, persistindo em correr a carreira que nos está proposta pelo nosso Senhor.
“Portanto, […] corramos, com perseverança, a carreira que nos está proposta, olhando firmemente para o Autor e Consumador da fé, Jesus, o qual, em troca da alegria que lhe estava proposta, suportou a cruz, não fazendo caso da ignomínia, e está assentado à destra do trono de Deus” (Hb 12.1,2).
Paz a todos vocês que estão em Cristo,
mz
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