Acordei assustado. O relógio marcava 8h e o apartamento todo tremia, ao som de guitarra, bateria e baixo. No repertório, musicas de rock, hard rock, heavy metal. Levantei assustado e fui, tropeçando, na direção do som. Cheguei à janela da sala e vi, lá embaixo, na rua, três músicos solitários posicionados na praça central de uma passagem subterrânea que há em frente ao meu edifício, mandando ver nos decibéis (foto). Minha primeira reação foi de indignação. Fiquei olhando, atordoado, aquela demonstração pública de desrespeito ao direito de paz e sossego do próximo. A ira me subiu à cabeça. Filmei a cena e postei no Facebook, talvez acreditando que o Ministério da Justiça ou o Super-Homem veria aquilo e viria em meu socorro. Já era o segundo dia consecutivo em que aquele rock ao ar livre incomodava toda a vizinhança e meus instintos mais primitivos fizeram ferver o sangue. Como reagir diante daquilo? Raiva, irá, ódio, revolta… muita coisa passou em meu coração naquele momento.
Ainda atordoado pelo sono interrompido, pensei em diferentes maneiras de resolver o problema. Cogitei descer e bater boca com os músicos, jogar ovo podre, tacar tomate, convocar uma manifestação entre os vizinhos, criar uma quizumba, fazer um rebu ou um auê… use a expressão que preferir. Meus sentimentos naquele momento eram bastante carnais, bem como todas as soluções que atravessavam minha cabeça. Quando começaram a tocar músicas da banda Black Sabbath, aí então é que fiquei furioso. Minha filha, acordada pelo susto do estrondo, esticava a cabeça pela janela para ver de onde vinha a barulheira. E eu já ponderava se seria mais eficiente jogar um saco com xixi de gato ou com cocô de cachorro sobre os músicos.
Foi quando eu parei. Aliás, eu não parei, o Espírito Santo me parou, pois o “eu” queria prosseguir maquinando planos maquiavélicos de vingança e retribuição. Só que o manso Espírito do Senhor não deseja isso de nós, ele requer a negação de si mesmo em nome do amor. E, quando Deus sussurra ao nosso coração, a razão bíblica toma conta de nós e de nossos pensamentos e ações. Então, fui parado. E pensei.
Eu sou um pacifista. Não acredito em violência, agressividade, maldade. Busco sempre a paz. Naquele momento, quando meu calo foi pisado com força pelos roqueiros da serenata indesejada, minha carne e minha pecaminosidade falaram mais alto. Porém, quando silenciei, acalmei o coração e deixei a voz do Espírito me orientar, só uma coisa veio à minha mente: gentileza.
Decidi, então, agir conforme creio que Jesus gostaria, lembrando que “A resposta calma desvia a fúria, mas a palavra ríspida desperta a ira” (Pv 15.1). A tal passagem subterrânea é administrada pelo shopping Rio Sul, localizado perto de meu edifício. Concluí que nada seria feito ali sem autorização do shopping. Assim, esperei dar 10h e telefonei para o Serviço de Atendimento ao Consumidor, que confirmou: a barulheira era uma ação “de incentivo à cultura” promovida pelo Rio Sul – e se estenderia por ainda mais quatro manhãs. Respondi que desejava falar com a administração do shopping. Fui atendido por uma jovem atenciosa, que me passou os contatos do departamento de marketing da instituição, responsável pela organização do evento. Enviei um e-mail, ponderando com a gerente de marketing sobre o bom senso de ter uma banda de rock tocando ao ar livre em uma zona residencial às 8h da manhã, explicando que aquilo pecava contra o Rio Sul e pedindo gentilmente que o evento fosse suspenso e não ocorresse nos dias seguintes.
No dia seguinte, despertei com um silêncio gostoso. Fui até a janela e não havia nada no local onde nos dias anteriores estava o barulho ensurdecedor. Sem precisar tacar ovo ou xixi, brigar ou ofender, fazer escândalo ou quizumba, ofender ou agredir… o problema estava resolvido. Graças a algo extraordinário chamado gentileza. Mais tarde chegou um e-mail do shopping, onde se lia “Agradecemos pelo seu contato e pela oportunidade de nos desculpar pelo ocorrido e de nos posicionar sobre alguns pontos a respeito de suas observações. No que se refere ao projeto ‘Passarela do Som’, uma das iniciativas do RIOSUL em comemoração aos 35 anos do shopping, que visa transformar o entorno em um local de cultura e lazer, com atrações que possam divertir e encantar os cariocas e os visitantes da cidade, informamos que o horário de início da ação será alterado para às 09h. Além disso, o volume do som será reduzido, no intuito de não incomodar nossos vizinhos”. Fiquei maravilhado. Veja o que a gentileza conseguiu fazer.
Por que estou relatando esse episódio? Para mostrar que funciona. Gentileza, graça, afetos, carinho, amor, brandura: essas virtudes dão resultado.
Infelizmente, além de carregar em nós uma natureza má, violenta e pecaminosa desde o útero de nossa mãe, somos adestrados desde a primeira idade a reagir a situações de violência com violência. Os três porquinhos queimam alegres o lobo mau no caldeirão da lareira. O caçador da Chapeuzinho Vermelho mata o lobo que atacou a vovó. João e Maria jogam a bruxa no fogo. O Gato de Botas come o gigante. Joãozinho derruba o pé de feijão e o gigante se esborracha no chão. Depois, crescemos e nos desenhos animados Jerry espanca Tom, o Pica-Pau joga o guarda nas cataratas do Niágara, Fred Flintstone soca o nanico Barney na cabeça, Homer Simpson estrangula o próprio filho. Viramos adultos e, nos filmes, nós, cristãos (sim, confessa, vai…), vibramos quando Bruce Willis explode o avião dos bandidos, os X-Men matam o vilão ou o Homem de Ferro detona seus inimigos. Aprendemos que é assim que se faz: violência exige violência, ataque exige ataque, erros exigem consertos incisivos, pecados exigem apedrejamentos, hereges merecem a fogueira (ou posts desaforados no facebook, no mínimo), irmãos em Cristo que discordam de nós merecem ser ridicularizados ou atacados de forma agressiva.
Aí vem Jesus. E diz: “Bem-aventurados os pacificadores, pois serão chamados filhos de Deus…” (Mt 5.9).
E diz mais: “Vocês ouviram o que foi dito: ‘Olho por olho e dente por dente’. Mas eu lhes digo: Não resistam ao perverso. Se alguém o ferir na face direita, ofereça-lhe também a outra. E se alguém quiser processá-lo e tirar-lhe a túnica, deixe que leve também a capa. Se alguém o forçar a caminhar com ele uma milha, vá com ele duas. Dê a quem lhe pede, e não volte as costas àquele que deseja pedir-lhe algo emprestado. Vocês ouviram o que foi dito: ‘Ame o seu róximo e odeie o seu inimigo’. Mas eu lhes digo: Amem os seus inimigos e orem por aqueles que os perseguem, para que vocês venham a ser filhos de seu Pai que está nos céus. Porque ele faz raiar o seu sol sobre maus e bons e derrama chuva sobre justos e injustos. Se vocês amarem aqueles que os amam, que recompensa vocês receberão?” (Mt 5.38-46).
E vai além: “Vocês ouviram o que foi dito aos seus antepassados: ‘Não matarás’, e ‘quem matar estará sujeito a julgamento’. Mas eu lhes digo que qualquer que se irar contra seu irmão estará sujeito a julgamento. Também, qualquer que disser a seu irmão: ‘Racá’ [tolo], será levado ao tribunal. E qualquer que disser: ‘Louco!’, corre o risco de ir para o fogo do inferno” (Mt 5.21-22).
E não para aí. Depois vem Paulo e lança esta: “Não retribuam a ninguém mal por mal. Procurem fazer o que é correto aos olhos de todos. Façam todo o possível para viver em paz com todos. Amados, nunca procurem vingar-se, mas deixem com Deus a ira, pois está escrito: ‘Minha é a vingança; eu retribuirei’, diz o Senhor. Ao contrário: Se o seu inimigo tiver fome, dê-lhe de comer; se tiver sede, dê-lhe de beber. Fazendo isso, você amontoará brasas vivas sobre a cabeça dele. Não se deixem vencer pelo mal, mas vençam o mal com o bem” (Rm 12. 17-21).
Resumo da história: gentileza é uma ordem de Cristo. Não é demonstração de fraqueza, tampouco de falta de zelo pelas coisas do alto: é justamente o padrão do Reino de Deus. E quem deseja ser cidadão desse reino precisa agir conforme a constituição da pátria celestial. Agressividade, revide, vingança, rancor, ódio e sentimentos e atitudes semelhantes não fazem parte daquilo que o Senhor espera de nós. E, por favor, não use Jesus e os cambistas do templo para justificar agressividade, um conhecimento hermenêutico mínimo e um bom comentário bíblico te explicarão esse episódio. Cristãos agressivos são uma ofensa à fé cristã. Cristãos arrogantes, verborrágicos e que defendem suas crenças com base na espada serão censurados, como Jesus censurou Pedro ao decepar a orelha de Malco. A ordem é “Guarde a espada!” (Jo 18.11). Seja espada física, seja espada das palavras, seja de atitudes.
Vivemos dias difíceis. Cristãos são atacados por todos os lados e os ataques vêm de fora e também de dentro da igreja. Somos tentados a revidar, como gladiadores gospel. Sem perceber, fazemos parte da carnal “guerra santa”, seja contra gente de fora que nos ataca, seja contra gente de dentro que discorda de nós. Ser sal da terra e luz do mundo é ser diferente do que nos ensinaram e nos adestraram a fazer desde pequenos. Ser sal da terra e luz do mundo é rejeitar o que fizeram os três porquinhos, ter coragem de denunciar a violência do Homem de Ferro e se recusar a reagir ao mal que nos fizerem pagando com mal. É fugir do padrão do mundo. Jesus não nos chamou para sermos lutadores de MMA gospel. Não podemos tratar os demais com sarcasmo, deboche, agressividade e rispidez. Não somos dos que agridem. Somos dos que caminham para a fogueira e os leões do Coliseu cantando louvores de glorificação a Deus. Ou deveríamos ser…
Seja gentil, minha irmã, meu irmão. Seja como Cristo é, o Príncipe da Paz. Seja coerente com o que você prega e com a fé que tem. Pelo amor de Deus.
Paz a todos vocês que estão em Cristo,
.
Clicando nas imagens acima e abaixo você vai à loja virtual da livraria Saraiva

Curtir isso:
Curtir Carregando...