Eu confesso: nos últimos tempos senti muita, muita raiva. É uma raiva estranha, resultado de um grande caldo de decepção, desapontamento, tristeza, revolta. Não é algo bonito de se dizer, em especial por ser eu um cristão, mas não posso mentir. Fato é que sou humano, habitação do pecado, e sentimentos brotam no coração sem que eu possa controlar. Permita-me explicar.

Você deve ter tomado conhecimento do caso de George Floyd, ser humano americano que foi preso pela polícia, imobilizado, jogado no chão e, até onde se sabe, sufocado até a morte por policiais que se ajoelharam sobre ele. Eu havia lido as notícias sobre a história e me indignado. Mas foi só quando assisti ao vídeo que tomei ciência da extensão do horror. O homem implorava por sua vida, a ponto de chamar “Mamãe!”. Em coro com a população ao redor, ele pedia por sua vida, diante do olhar impassível de diabos vestidos de policiais. E ele morreu.

Eu chorei e chorei muito. A voz de George e das pessoas ao redor, clamando por sua vida diante de criaturas de Deus que não davam a mínima, rasgou meu coração. Logo, o choro deu lugar a indignação e raiva. Tentei segurar, mas não deu. Sim, senti raiva, muita raiva.

Os últimos meses têm sido um teste para meu cristianismo, minha capacidade de não deixar a raiva virar ira, meu desejo de ser sempre perdoador, minha força para amar e não devolver mal com mal. Não por causa da pandemia, mas por testemunhar em diversos âmbitos o pior do ser humano. O contexto apenas traz à tona o que já existe no coração de cada um e revela o que normalmente os lábios não têm coragem de falar. Pessoas que eu amei mostraram o pior de seu coração. Gente que eu admirava destilou palavras assustadoras. Cristãos promoveram pecados e injustiças como se fossem virtude. Que tempo! Que período! Que desafio!

Ontem, ver o vídeo da abominação de George Floyd foi a gota d’água. O acúmulo de decepção e incredulidade diante do que pessoas são capazes de fazer me levou ao chão, ao joelho, e a raiva transbordou na forma de uma poça de lágrimas no chão. Raiva, muita raiva.

Pode ser que você tenha sentido ou esteja sentindo raiva também. Por causa de política, da pandemia, de decepções, da situação econômica, do comportamento humano, dos rumos da vida. Talvez seu coração esteja pesado, com sentimentos nada bonitos, mas que você não consegue evitar. O que fazer diante do confronto entre nossa humanidade inclinada ao mal e a urgência de ser manso e humilde de coração, conformados à imagem do Cordeiro? Permita-me compartilhar algo sobre isso, que pode ajudá-lo.

Eu estava ali, rangendo os dentes de raiva pela tortura e morte de George Floyd, pela decepção com pessoas, pela maldade e o egoísmo do ser humano. Foi quando, em meio àquela oração doída e molhada, veio um pensamento em minha mente, certamente semeado pelo Santo Espírito de Deus: se eu permitisse que toda aquela raiva se enraizasse em meu coração, eu não seria em nada melhor do que os carrascos que assassinaram o pobre homem. E, se permitisse que a ira atravessasse aquela noite, eu estaria com meu joelho no pescoço de cada pessoa que me decepcionou. Eu me tornaria igual a quem tanto mal fez – a mim e a George.

A teologia cristã nos ensina a doutrina reformada da depravação total: não temos em nós mesmos a capacidade de vencer o mal e dependemos exclusivamente da graça do Cordeiro. Sou sujeito a essa depravação. Nasci imerso em pecado e sou sua habitação. Quando ouvi a voz do Espirito, clamei a ele, o outro habitante de meu coração, e pedi que me inundasse de paz, perdão, magnanimidade, amor, graça e abnegação, porque, por mim mesmo, eu não teria forças para isso.

Pedi que me inundasse de Cristo.

Foi quando veio uma paz que não consigo entender. Uma paz acompanhada da certeza de que não posso esperar o melhor do ser humano, porque cada indivíduo deste planeta é terrivelmente idólatra de si mesmo, perdidamente apaixonado pelos próprios interesses e, se eu sentir raiva cada vez que testemunhar o egoísmo e a malignidade das criaturas de Deus, acabarei sendo vencido pela semente do mal que há em mim.

Foi quando veio uma avassaladora sucessão de verdades bíblicas ao meu coração. Lembrei de que a vingança pertence ao Senhor. Que temos de amar até os inimigos. Que eu sou tão depravado quanto os mais egoísta dos homens e das mulheres. Que nosso descanso não está nesta vida. Que o perdão não é opcional, mas um mandamento. Que não há um justo, nem um sequer. Que felizes são os pacificadores. Que os piores dos seres humanos podem ser resgatados de sua maldade por Cristo. Que Deus é soberano sobre a terra e que meu Redentor há de se levantar sobre ela. Foi um tsunami de verdades que a raiva havia roubado da minha lembrança. E o tsunami trouxe a paz.

Levantei daquela poça com menos raiva. Ainda triste, mas sem raiva. Milagre desses que só Jesus de Nazaré é capaz de operar. Assim como, com uma frase, ele sarou o leproso, Jesus insuflou paz em meus pulmões e a certeza de que nada, absolutamente nada, está alheio aos seus olhos e ao seu coração. E de que ele não está de ouvidos fechados ao clamor dos seus filhos, nem de costas para os fatos que há na terra.

Ele é Emanuel, Deus conosco. Justo, amoroso, compassivo e bom.

Meu irmão, minha irmã, talvez você esteja com muita raiva em seu coração neste momento. Eu não te condeno, acredite, pois passei por isso e te entendo. Pessoas também me feriram. Situações também me abateram. A humanidade também me decepcionou. Mas, olha, deixa eu te dizer uma coisa, de igual para igual: Deus pode mudar isso. Como se irar e não pecar? Indo aos pés do Cordeiro, em pranto, confissão, humilhação e verdade, clamando e se entregando. Atire-se, com autenticidade. Não negue o que pesa em seu coração. E confie na ação sobrenatural de Deus, a única capaz de fazer com que a sua ira não atravesse o limite e triunfe, hedionda, como a obra da carne que ela é.

Cristo assassinou aquilo que assassinou George Floyd. Ele fez isso no Calvário, quando consumou tudo em si. Que os meus e os seus olhos estejam voltados menos para a barbárie e o egoísmo humanos e mais para a cruz do Gólgota, menos para o desdém pela vida alheia e mais para o amor que tanto amou a vida alheia que entregou o próprio Filho em sacrifício vivo. Meu irmão, minha irmã, eu e você não valemos mais do que aqueles policiais que fizeram mal a George nem que aquelas pessoas que nos fizeram mal. Somos igualmente depravados, egoístas, egocêntricos, vaidosos, raivosos. Mas, se Cristo vive em nós, podemos ser diferentes. Não pela força do nosso braço, mas pela extraordinária graça que esvazia a nossa raiva e nos conforma à natureza do manso Cordeiro.

E, quando isso acontece, após levantarmos da poça de lágrimas e nos deitarmos na cama, conseguimos dizer, antes que o sono da paz nos embale pela noite:

– Pai, perdoa, pois eles não sabem o que fazem.

Paz a todos vocês que estão em Cristo,
Maurício Zágari
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comentários
  1. Adoryan disse:

    Uow, que percepção sobre o que temos sentido! E sobre o “ser cristão”.

  2. maria de fatima lopes disse:

    Esse é o Maurício que conheço! Sentir a dor do outro, isso deveria ser o normal, mas infelizmente o ser humano é dotado de muito egoísmo e nem todos conseguem evoluir. Gostei muito do seu texto querido. Abração!

  3. Tony Victor Pereira Tavares disse:

    Obrigado por compartilhar este texto conosco, de fato este tem sido um ano que tem levado nossa mansidão a prova em níveis extremos.

  4. Igor Daniel disse:

    Amém.

  5. Daniel disse:

    Parabéns Maurício, uma sensibilidade rara no meio Cristão, a publicar a nossa “voz” nossos sentimentos íntimos, tal qual o reconhecimento da natureza do nosso ser.
    “Que seja assim, daqui até a eternidade, mais compaixão, amor e fraternidade”.

  6. Natanael C Silva disse:

    Maurício, estamos juntos nessa indignação e raiva. E é bom saber que não somos exceção, ainda que cristão. Vendo uma cena dessas a gente chega a desacreditar da natureza humana. Quanta maldade. O diabo com certeza exultou. Não há mesmo outra forma de reagir vendo esta cena odiosa. Felizmente, Jesus é o príncipe da paz e podemos buscá-lo nessas horas.
    Salmos 14:3, diz:
    “Desviaram-se todos e juntamente se fizeram imundos: não há quem faça o bem, não há sequer um.”
    Deu te abençoe! Abraços.

  7. suscaloc disse:

    Paz, irmão.
    Também me pego muitas vezes, em meio a toda essa crise, muito indignada e irada. Mas me lembro das palavras de Paulo no livro de Romanos: De maneira que cada um de nós dará conta de si mesmo a Deus.
    Estou buscando permanecer na vontade de Deus; é difícil mas é o melhor pra nós. Tenho pedido perdão diariamente por sentir essa ira, mas sei que o Senhor vai nos tratando e aperfeiçoando…
    Força, irmão!!!
    MARANATA!!

    Dra. Suzana
    ________________________________

  8. Misael disse:

    Em tempos de guerra é cada vez mais rara uma palavra cristã de verdade como essa, grato ao Senhor por te usar pra falar comigo. Que nosso Senhor Jesus nos guarde hoje e amanhã.

  9. divieira08 disse:

    Mauricio Zagari, muito obrigada por compartilhar conosco esses sentimentos, que são meus também, eu os senti também, muito obrigada por nos ajudar a lidar com eles.

    Enviado do Email do Windows

  10. Márcia disse:

    Até que enfim encontrei um artigo cujo conteúdo não é somente blá blá e blá.

    Estou acostumada a ouvir pessoas dizerem que crente não pode sentir raiva, que crente tem que ser a santidade em pessoa. Porém o Senhor através dos teus ensinamentos me ensina que somos todos pecadores, e que apenas a misericórdia e a graça dEle tem nos colocado em pé.

    Nos últimos tempos tenho sentido muita raiva, raiva da vida, das injustiças, das pessoas que amo mas que acabaram me decepcionando, tenho sentido tanta raiva que já me vi de joelhos no chão e implorando ao Pai para que venha buscar a sua igreja. Mas quando vou ao encontro dEle no nosso lugar secreto, Ele sabe sempre como acalmar o meu coração, Ele me leva até as águas tranquilas, e a paz dEle que excede todo entendimento me envolve por inteiro.

    Amado Jesus tua palavra declara em João 10:10 ” O ladrão não vem senão para matar roubar e destruir, porém você veio para nos dar uma vida abundante” Ajuda-nos Senhor a viver essa vida abundante, mesmo em meio as calamidades que assolam a humanidade, ensina-nos a amar o próximo mesmo quando este não merece, afinal somos pessoas imerecidos também, pecamos todos os dias, mas ainda assim continuas nos amando.

    Deus abençoe você irmão Maurício, teus encorajamentos tem sido balsamo para a minha alma.

    Deus abençoe você.

  11. Henrique Miguel dos santos disse:

    Maurício estou muito feliz com o retorno da suas publicações, Deus te abençoe e um pedido: não desapareça mais,por favor kkkk

  12. Débora disse:

    Amém! Glória a Deus por essa reflexão.
    Acompanho suas reflexões faz um tempo, quando procurava consolo de Deus pois estava passando por uma fase dificil, porém de grande aprendizado. Saiba que sempre foram um bálsamo para mim.
    Deus continue te iluminando e conduzindo nesse caminho rumo ao céu.
    É bom saber que ainda hoje existem cristãos com essa percepção de verdadeiro cristianismo.
    Paz do Senhor Jesus!

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